À conversa com o Oeiras Valley, a Diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência, Mónica Bettencourt-Dias, deu destaque aos principais projetos desenvolvidos pelo IGC que preconizam um futuro com mais saúde. A também presidente da EU-LIFE abordou ainda a parceria levada a cabo com o Município de Oeiras para a importância da democratização da ciência e do trabalho.
Leia a entrevista e conheça os principais trabalhos desenvolvidos pelo IGC para um futuro com mais saúde e descubra as iniciativas promovidas em articulação com a Câmara Municipal de Oeiras e o apoio prestado pelo IGC na luta contra a pandemia de COVID-19.
Em entrevista, Mónica Bettencourt-Dias fala ainda da nomeação para presidente da EU-LIFE, uma aliança de quinze institutos de topo em ciências da vida na Europa, e da importância da participação portuguesa na definição da ciência a nível internacional.
Doutora Mónica Bettencourt-Dias, o Instituto Gulbenkian de Ciência é um dos mais reconhecidos centros dedicados à investigação científica em Portugal e também a nível mundial.
Desde a sua fundação, em 1961, quais os principais feitos que destaca no âmbito dos trabalhos desenvolvidos pelo IGC?
O IGC tem trabalhado em diferentes dimensões da ciência desde a sua fundação. Desde os anos 80, tem sido dado maior destaque à área da Biologia.
Têm sido desenvolvidos trabalhos muito interessantes para compreender o funcionamento do corpo humano, nomeadamente na forma como os órgãos comunicam entre si. No IGC descobrimos que há órgãos que envelhecem mais rapidamente e que comunicam com os restantes para promover o envelhecimento global do organismo.
Descobriu-se também a forma como o sistema nervoso comunica com o tecido adiposo e o sistema imunológico. Um processo fundamental para a regulação da massa gorda no organismo. O sistema nervoso, através de certas moléculas, pode controlar se se gasta mais ou menos gordura. Essa informação é-nos muito valiosa, nomeadamente para perceber os mecanismos de acumulação de gordura no organismo e definir estratégias para controlar esse processo.
Têm sido desenvolvidos trabalhos muito interessantes para compreender o funcionamento do corpo humano, nomeadamente na forma como os órgãos comunicam entre si.
Perceber a comunicação dos órgãos é igualmente relevante para a compreensão de vários estados de doença e para a definição de estratégias para atenuar os efeitos danosos, por exemplo, como acontece em casos de sépsis ou formas graves de COVID-19. Quando as pessoas são expostas a micróbios, o corpo reage para matar os agentes infeciosos, mas, por vezes, essa reação é tão forte que o corpo pode matar-se a si próprio.
Temos vários investigadores a estudar este tipo de reação e a forma como nos podemos proteger da doença, não só matando os micróbios mas também a proteger o nosso corpo. Em particular, o investigador Luís Moita está a desenvolver trabalho que permitiu perceber que alguns antibióticos podem ajudar a promover a defesa do nosso corpo, para além da sua função de matar os micróbios. Há ainda outro investigador, o Miguel Soares, que também trabalha neste tipo de doenças, nomeadamente no contexto da sépsis, e também de outras doenças como a malária.
Pode descrever alguns dos principais trabalhos em desenvolvimento no IGC?
O trabalho desenvolvido no IGC é muito vocacionado para a biomedicina. Temos várias pessoas a trabalhar na área dos micróbios e na forma como interagimos com estes organismos. Os micróbios não só são importantes porque são patogénicos, como o SARS-CoV-2, bactérias, entre outros, mas também porque há micróbios que são benéficos para o corpo humano. Eu não sou só a Mónica. Eu sou os micróbios que vivem dentro de mim. Perceber esta relação é muito importante porque estamos a descobrir que estes micróbios podem ditar, por exemplo, se somos mais sensíveis a certas terapias contra o cancro – se elas vão ou não funcionar -, ou se somos mais suscetíveis a certas doenças neurodegenerativas.
Estamos a desenvolver estudos para perceber como é que estes micróbios vivem dentro de nós e como comunicam entre si. Tal como nós temos comunidades com muitas pessoas diferentes e que se regem por determinadas regras sociais, talvez os micróbios também vivam em comunidades similares. Perceber esta dinâmica entre os vários micróbios é muito importante do ponto de vista da resistência a antibióticos. Como sabemos, os micróbios podem tornar-se resistentes aos antibióticos, o que pode impossibilitar o tratamento.
Os micróbios não só são importantes porque são patogénicos, como o SARS-CoV-2, bactérias, entre outros, mas também porque há micróbios que são benéficos para o corpo humano.
Outra área com desenvolvimentos interessantes é perceber a forma como a nossa dieta influencia os micróbios que vivem dentro de nós. A investigadora Karina Xavier descobriu que a composição dos micróbios varia em função de dietas mais ricas em fibras e vegetais, ou dietas mais ocidentais, ricas em gorduras saturadas.
Temos uma investigadora que também quer perceber como é que o nosso corpo é formado para estudar a forma como resistimos ou não a certas doenças. Em particular, o olho, devido à sua complexidade, é um dos órgãos que permite perceber a forma como os restantes órgãos são formados, porque é muito complexo. Este órgão é composto por um conjunto diferenciado de células que percebem o movimento e os diferentes tipos de luz, comunicando entre si e também com o cérebro para a perceção correta dos objetos.
Estudamos a formação do olho em peixes transparentes e também em pratos de cultura que, com recurso a células humanas, tem permitido fazer descobertas altamente inovadoras. Uma das aplicações desta investigação pode vir a resultar no tratamento de algumas doenças do olho, nomeadamente problemas na visão.
Quais os objetivos do IGC para um futuro próximo? E a longo prazo?
O nosso grande objetivo tem como base a investigação, os grandes desafios do futuro da humanidade e as relações com micróbios. Como estamos a descobrir que os micróbios influenciam muito mais do que aquilo que pensávamos, consideramos que pode haver enormes implicações na saúde. Estamos, por isso, a desenvolver esforços para perceber melhor a forma como o corpo humano é formado, a interação com micróbios e as relações com o ambiente, a nutrição, os fármacos, entre outros elementos. Perceber a nossa relação com o ambiente e os impactos ao longo do tempo é uma dimensão muito importante a ser estudada e que muitos institutos ainda não estão a seguir.
Por outro lado, achamos cada vez mais que a ciência não pode ser vista isoladamente, com os cientistas na sua torre de marfim. É fundamental que a ciência esteja integrada com a sociedade, por fazer cada vez mais parte do nosso dia-a-dia, como, por exemplo, em decisões que se prendem com a utilização de telemóveis ou com questões de saúde relativas à vacinação, entre outras.
É fundamental que a ciência esteja integrada com a sociedade, por fazer cada vez mais parte do nosso dia-a-dia.
É fundamental investir na aproximação da ciência à sociedade. A investigação no IGC estabelece ligações às empresas, a hospitais, às escolas, à sociedade e ao cidadão. No caso particular das escolas, acreditamos que, desde cedo, as crianças devem ser expostas à ciência e a pensar de uma forma crítica. Esta abordagem visa a promoção da consciência enquanto cidadãos e do poder que têm para alterar a sociedade em que vivem, com recurso à ciência.
A internacionalização do IGC é também muito relevante, porque apesar de já se fazer ciência de elevada qualidade em Portugal, ainda somos vistos, com frequência, como um país periférico nestas temáticas. É, por isso, importante incentivar e cativar cientistas para trabalharem em Portugal. Temos vindo a notar que, após terem contacto com a forma como se trabalha em Portugal, muitos cientistas estrangeiros passam a ter uma leitura diferente. Alterar esta ideia de que em Portugal não se faz boa ciência é uma missão para nós. Para isso, desenvolvemos diversas iniciativas através do nosso centro colaborativo, tais como workshops, conferências sabáticas e muitas outras atividades em colaboração com a Câmara Municipal de Oeiras.
Na sua opinião, quais são as grandes vantagens competitivas de o IGC estar localizado em Oeiras?
Oeiras é muito dinâmica do ponto de vista da ciência. É talvez o concelho mais dinâmico do país. Há uma comunicação muito próxima entre os institutos de investigação e a Câmara Municipal de Oeiras, o que é um elemento essencial para a criação de um ecossistema entre as empresas, as escolas e os cidadãos, seguindo uma abordagem inovadora.
Em particular, a Câmara de Oeiras tem parte do orçamento dedicado à ciência, percebendo que esta área associada à inovação e às escolas é critica para o futuro da sociedade e da economia.
Estão previstos trabalhos a serem desenvolvidos em parceria com a Câmara Municipal de Oeiras ou com a comunidade local?
Antes do início da pandemia de COVID-19 foi realizada uma assembleia de cidadãos de Oeiras para identificar as necessidades relacionadas com a ciência e como pretendem ver o papel da ciência destacado no município. Uma das respostas mais frequentes foi a necessidade de haver mais comunicação de ciência e de conhecerem mais sobre o trabalho desenvolvido nas instituições de investigação. Considero que essa foi uma atividade verdadeiramente inovadora, de uma grande aproximação da ciência à sociedade e da democratização da ciência, que é algo muito importante para nós.
Há, no entanto, muitas outras atividades que temos desenvolvido em parceria com o município de Oeiras, tais como o Lab in a Box – um laboratório numa caixa. Este kit é partilhado com as escolas para promover atividades relacionadas com a ciência desde muito cedo e para promover o pensamento crítico e científico.
Na pandemia de COVID-19, foi identificada a necessidade de haver mais comunicação de ciência e de conhecerem mais sobre o trabalho desenvolvido nas instituições de investigação.
Destacamos também o Lab in a Suitcase, um projeto que promove a democratização da ciência em países de expressão portuguesa. O acesso à ciência é complexo, em parte porque o equipamento científico é muito caro, mas com recurso a impressoras 3D e outros materiais, é possível disponibilizar equipamento de ciência muito mais barato. O Lab in a Suitcase permite, por exemplo, a realização de testes moleculares similares aos testes à COVID-19, de uma forma muito barata.
À semelhança do que está a ser feito para Portugal, estes materiais estão a ser distribuídos em diferentes países africanos para promover a ciência em instituições de investigação e no ensino superior.
Recentemente foi nomeada como nova Presidente da EU-LIFE, uma aliança de quinze institutos de topo em ciências da vida na Europa. De que forma pode esta nomeação contribuir para o reforço da investigação científica em Portugal e a nível internacional?
A EU-LIFE é constituída por 15 institutos de diferentes países que promovem a investigação ao mais alto nível, a partilha de como se faz a ciência, da gestão destas instituições, dos processos de recrutamento e formação dos recursos humanos. A partilha destas valências é fundamental para aprender com outros aquilo que demoraria muito mais tempo a aprender de forma isolada. Podemos ter um papel muito importante na EU-LIFE porque somos uma voz que também reflete o que se passa em Portugal.
Por outro lado, há uma grande discussão na Europa sobre a ciência – em parte devido à pandemia de COVID-19 – onde se debate os avanços da ciência, a direção que deve tomar no futuro, que tipo de áreas devem ser promovidas, que tipo de programas de financiamento devem existir e que processos devem ser aplicados para a avaliação e promoção dos investigadores.
O futuro da ciência na Europa é a ligação à inovação.
Na minha leitura, creio que ainda não avaliamos os processos de colaboração de forma adequada, um elemento de elevada importância, uma vez que a ciência é cada vez mais multidisciplinar. Por outras palavras, eu não posso fazer só biologia. Cada vez mais, o IGC recebe pessoas que vêm de Física, de Engenharia, de Matemática, de Medicina, e é esta confluência de ideias muito diferentes que traz a inovação.
O futuro da ciência na Europa é a ligação à inovação. Nas atividades que temos realizado com a Câmara Municipal de Oeiras, temos o apoio de um gabinete dedicado de dois institutos – IGC e ITQB – que fomenta atividades de inovação nos nossos grupos de investigação. O gabinete está a promover um concurso que termina no início de abril, designado de prova de conceito, que financia a aplicação das ideias dos nossos cientistas. A prova de conceito é financiada em parceria com o Município e com as nossas instituições, com o objetivo de promover a ligação à inovação, ao nível do que se faz nas instituições mais avançadas internacionalmente, o que pode ser um exemplo excelente para outras instituições a nível nacional.
Nos últimos dois anos, quais os grandes contributos do IGC na luta contra a pandemia de COVID-19?
Desde muito cedo, antes mesmo de se verificar o primeiro caso de COVID-19 em Portugal, começámos a discutir o que poderíamos fazer, por exemplo, se fosse necessário reforçar os diagnósticos da doença no país. Foi organizada uma task-force no IGC liderada pela Professora Jocelyne Demengeot e com o Professor Carlos Penha Gonçalves, que está agora à frente da task-force de vacinação. Estes dois investigadores coordenaram muitas atividades, nomeadamente o diagnóstico de COVID-19 em diferentes níveis da população, entre os quais os profissionais de saúde, os idosos e a comunidade escolar.
Foi também dado apoio na sequenciação do vírus. Como sabemos, o SARS-CoV-2 evolui ao longo do tempo e perceber quais as variantes do vírus em circulação é muito importante para se agir de forma rápida e adequada a cada momento. O IGC foi a segunda instituição em Portugal a fazer mais sequenciação à COVID-19, depois do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, como forma de apoio complementar neste domínio.
Desde muito cedo, antes mesmo de se verificar o primeiro caso de COVID-19 em Portugal, começámos a discutir o que poderíamos fazer, por exemplo, se fosse necessário reforçar os diagnósticos da doença no país.
Por outro lado, para perceber o grau de disseminação do vírus na população, e por haver muitos casos assintomáticos, desde cedo percebemos que, além de verificar a presença do vírus através dos testes moleculares de diagnóstico – como o PCR -, seria igualmente necessário olhar para os anticorpos. Em 2020, em articulação com outras instituições da área de Lisboa, foi desenvolvido o programa Serology for COVID, um Consórcio para desenvolver um novo teste de anticorpos. Este teste tem sido também utilizado por outras instituições para estudar os nossos anticorpos contra SARS-CoV-2, por exemplo, para verificar se os anticorpos passam das mães para os bebés através da amamentação, contando já com mais de 12 publicações.
O IGC desenvolveu igualmente outro teste para o diagnóstico da COVID-19, porque nos apercebemos da dificuldade de utilização da zaragatoa em crianças. A nossa investigadora Maria João Amorim, desenvolveu, juntamente com a Dra. Maria João Brito, um teste à saliva que passou a ser utilizado neste segmento da população, tendo obtido um prémio da Sociedade Portuguesa de Pediatria.