Recentemente premiado com uma bolsa European Research Council, através do apoio dado pela Câmara Municipal de Oeiras ao Centro Colaborativo Gulbenkian do Instituto Gulbenkian de Ciência, o projeto “Imunidade Inata e Inflamação”, liderado por Luis Moita, pretende encontrar um tratamento para doenças inflamatórias, como a sépsis, estudando os mecanismos do nosso organismo. No decorrer da conversa, foi ainda abordado o papel decisivo que o Município de Oeiras tem dado na concretização e prossecução de projetos científicos, como é o caso do “Imunidade Inata e Inflamação”.
Conheça melhor o projeto vencedor do Prémio European Research Council, através das palavras de Luís Moita, o “Rosto da Ciência” que coordena este projeto inovador na área da imunologia.
Doutor Luís Moita, foi recentemente nomeado vencedor do Prémio ERC Oeiras. Qual o significado deste prémio para si?
O prémio é muito importante para nós, não só porque é um reconhecimento do nosso trabalho e daquilo que nós pretendemos fazer – o que é sempre bom ver reconhecido -, mas também é uma forma de podermos continuar a fazer aquilo que de facto queremos.
Este prémio vem na sequência de uma candidatura que fizemos ao European Research Council, a um nível avançado. E estas são candidaturas extraordinariamente competitivas. Por ano, há cerca de seis prémios, na área da imunologia, que são atribuídos em toda a Europa a pessoas com grande potencialidade e, portanto, independentemente da qualidade do projeto, nem sempre é possível conseguirmos esse prémio.
Em Portugal – com a instabilidade de financiamentos e com a irregularidade e a imprevisibilidade -, o facto de não termos um financiamento a este nível, causa entraves importantes. Portanto, a iniciativa lançada pela Câmara Municipal de Oeiras dá-nos uma ajuda muito importante para conseguirmos continuar a prosseguir e a estarmos em posição de nos voltarmos a candidatar.
Quais as mais valias deste Prémio para o trabalho de investigação no IGC relativo aos temas da “Imunidade Inata e Inflamação”?
Essas mais valias, como referi anteriormente, são muito importantes. São essenciais. Porque, de facto, atravessamos – não só em Portugal, mas como em muitos países – dificuldades de financiamento críticas e a investigação que fazemos, nos dias que correm, na área da biologia e da medicina são muito exigentes financeiramente. Portanto, é uma ajuda absolutamente preciosa e crítica. Nós podemos sempre continuar a fazer as coisas que normalmente fazemos, mas, com recursos mais limitados, temos que diminuir a profundidade do que fazemos, e não a um nível ótimo. Esta é uma ajuda absolutamente crítica que nos permite continuar a trabalhar no projeto nos próximos dois anos.
Quais os avanços científicos que se podem esperar desta linha de investigação no âmbito da atribuição do Prémio ERC?
O nosso laboratório tem dois grandes objetivos e eles são muito interdependentes e só funcionam se estiverem ligados um ao outro. O primeiro é descobrir os mecanismos fundamentais de como o organismo humano funciona, numa perspetiva mais intelectual e de mais curiosidade, mas sempre com a ideia de que, ao compreendermos os mecanismos de funcionamento do nosso organismo, podemos aproveitar esse conhecimento para o tratamento de doenças que nos interessam particularmente. E nós fazemos as duas coisas. Às vezes, partimos do conhecimento mais fundamental para a aplicação clínica. Outras vezes, partimos de problemas clínicos, para fazermos investigação e, se tudo correr bem, voltarmos ao início para podermos aplicar aquilo que encontrámos em laboratório. E aquilo que estamos a propor é um pouco nesse sentido. Temos vindo a descobrir, ao longo dos últimos anos, vários medicamentos que são usados para outras aplicações e que têm um efeito nos modelos que nós usamos em laboratório, especialmente na proteção contra a doença que nós estudamos mais – a sépsis – e que aumentam dramaticamente a sobrevivência nesses modelos. Uma das coisas que temos vindo a fazer é perceber porque é que essa proteção acontece e quais são os mecanismos que justificam isso, pois se os compreendermos, podemos desenvolver formas de intervenção terapêutica cada vez mais dirigidas e mais eficazes. E a outra vantagem daquilo que estamos a fazer é, como esses fármacos estão aprovados para uso clínico, potencialmente a transposição do laboratório para a clínica pode ser relativamente rápida. Nesse âmbito, temos agora um ensaio clínico que está se está a iniciar na Alemanha em cinco grandes centros hospitalares para testar precisamente uma das nossas descobertas no laboratório e vermos de que modo pode ser aplicado na sépsis em doentes.
A imunidade inata e inflamação é uma designação mais vasta que cobre muitas patologias na área da infeção, inflamação e autoimunidade. E, a propósito de inflamação, é um daqueles problemas que provavelmente faz parte de todas as doenças que nós conhecemos, pelo menos em termos crónicos. Todas elas têm um componente de inflamação. E é verdade. Estamos habituados a pensar em inflamação nas coisas mais óbvias, mas a maior parte das outras doenças crónicas, incluindo doenças cardiovasculares ou diabetes, que afeta grande parte da população, tem como sua causa, ou como componente essencial, a inflamação. Portanto, isto é uma designação muito vasta. E depois há outras doenças que são quase exclusivamente inflamatórias. Portanto, isto toca muitas coisas. É claro que, nos concentramos mais em algumas patologias. No laboratório, o grande foco na sépsis deve-se à sua gravidade e falta de tratamentos específicos, e onde a inflamação tem um papel crítico.
Na sua leitura, os apoios para a investigação e ciência em Portugal são suficientes? Que apoios destaca?
Em Portugal, são manifestamente insuficientes. Quase que nem se qualificam como insuficientes. Há imensos problemas associados ao financiamento da investigação em Portugal, que é considerada, apesar daquilo que se diz publicamente, um parente pobre de todas as atividades. A título de exemplo, caso queiramos registar a nossa profissão na Segurança Social, o cargo de cientista não aparece. E o de investigador também não. A única designação de investigador que está presente refere-se aos investigadores da Polícia Judiciária.
Portanto, nós nem sequer somos reconhecidos oficialmente com a nossa profissão. Isso pode parecer algo anedótico, mas, de facto, traduz aquilo que é o cuidado que a investigação recebe em Portugal. E quem diz Portugal, diz muitos outros países do sul da Europa. E, apesar de não ter reflexos imediatos, tem reflexos a muito longo prazo, naquilo que nós temos, na nossa qualidade de vida, no que nós podemos contribuir a um nível mais elevado para os objetivos europeus comuns, e por aí adiante. E, portanto, não há, de facto, o apoio suficiente a um nível central para a investigação que nós pretendemos fazer. A nossa comunidade tem muitos exemplos de enorme sucesso, mas não temos apoio suficiente para continuarmos este trajeto. A oportunidade de financiamento português não nos permite sermos competitivos ao nível europeu e mundial. Para dar um exemplo, os únicos financiamentos que nós temos, de uma forma oficial em Portugal, vêm da Fundação para a Ciência e Tecnologia em Portugal, que continua a ter um caráter algo irregular e que são muito baixos.
Para além disso, a única outra possibilidade que temos de facto importante, mas que é extraordinariamente competitiva – porque temos que competir com toda a Europa ao mais alto nível – é o European Research Council (ERC). Felizmente que recentemente Oeiras teve esta iniciativa muito pioneira, pelo menos em Portugal, de ajudar as pessoas a continuar a concorrer. E, tirando isso, nós não temos mais oportunidades a este nível.
No caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, não só agora há uma série de regras que apenas nos permite concorrer a um único projeto, por equipa, dentro do qual há imposições quanto à atribuição de verbas, como a contratação de recursos humanos. Isto significa que, para comprar reagentes e equipamento necessários, o orçamento é muito restrito. É difícil transmitir às pessoas o quão caro é fazer investigação. E, portanto, nós estamos muito, muito limitados. Mais uma vez, esta ajuda atribuída pela Câmara Municipal de Oeiras é uma ajuda preciosa nos tempos que correm.
Portugal precisa de investir muito mais. Ao nível absoluto e ao nível relativo.
No âmbito do trabalho do grupo de investigação “Imunidade Inata e Inflamação”, no IGC, sente que há vantagens nas parcerias com a Câmara Municipal de Oeiras?
Acho que é fundamental, para o ambiente onde estamos e onde vivemos, apoiar a comunidade existente. E Oeiras é privilegiada no sentido de ter várias instituições ao mais alto nível, que são muito reconhecidas, e que fazem coisas com imenso mérito. Portanto, muita da potencialidade daquilo que fazemos vem também de uma certa escala. Ou seja, se estivermos sozinhos, e tivermos apenas um laboratório ou um pequeno instituto, não é igual a termos um ecossistema que podemos potenciar mutuamente os recursos existentes. E estarmos numa região – Oeiras – que reconhece, acarinha e que patrocina é uma enorme mais-valia e isso tem-se visto recentemente.
De que forma a estratégia de inovação e ciência implementada pelo Município de Oeiras tem beneficiado esta área e os seus especialistas?
A área e os especialistas têm sido beneficiados o mais possível com a estratégia desenhada pelo município.
Esta iniciativa da Câmara Municipal de Oeiras é, de facto, muitíssimo importante e esperamos que inspire outros, de uma forma mais global e a um nível central, a fazer este tipo de coisas. O que é, de facto, algo surpreendente é que seja uma Câmara (Oeiras) a ter este tipo de iniciativas que (quase) seriam óbvias. Mas não são. Isto é feito em outros países. Estes mecanismos existem em muitos outros países onde projetos – como o nosso -, que foram classificados ao mais alto nível, contam com o apoio dos vários governos dos países onde emergiram.
E em Portugal, infelizmente, isso não acontece. Portanto, o facto de podermos contar com o apoio da Câmara de Oeiras é ótimo. Estamos muito contentes, pois temos uma (maior) segurança para conseguirmos executar o nosso projeto. Mas, ao mesmo tempo, é triste ser uma única Câmara a ter este tipo de iniciativas. Devia ser óbvio. Não devia ser uma autarquia que deveria estar a fazer isto. Deveria ser Portugal, ao nível central, que deveria ter este tipo de iniciativas, com projetos como o nosso.
Posto isto, somos, obviamente, privilegiados por estarmos inseridos num local que pensa nesta área e que faz as coisas da forma certa. Que faz o desejável.
O que nos pode dizer sobre a Sépsis?
Muito provavelmente, a grande maioria nunca ouviu falar da sépsis, mas é muito importante que as pessoas reconheçam a importância desta patologia. E os números falam por si.
Em 2017, por exemplo, data em que há mais informação disponível, quase 50 milhões de pessoas em todo o mundo foram afetadas. Como resultado, mais de 11 milhões morreram. Todos os anos, a sépsis é responsável por, pelo menos, 20% de todas as mortes a nível mundial.
A sépsis está-se a aproximar do nível de mortalidade causada pelo cancro – às vezes chega a ser superior – e, em última análise, todas as pessoas acabam por morrer com aquilo que acontece na sépsis e que é a falência de todos os nossos órgãos. Isso é uma janela importante para nós, porque nos permite estudar os mecanismos de funcionamento dos órgãos, como estes comunicam entre si e como é que as coisas correm mal quando temos uma infeção sistémica em todo o organismo. A sépsis tem uma importância crescente, pois afeta um número de pessoas crescente. Importante é referir também que não há nenhum tratamento específico direcionado para esta patologia. O tratamento tem evoluído, está cada vez melhor, a mortalidade – em termos individuais – tem estado estável ou decrescendo um pouco, mas isso é fruto do apoio não específico que é dado a essas pessoas em termos hospitalares. Em termos de tratamento específico, não existe. E isto acontece desde há muitas décadas atrás. Desde a introdução de antibióticos, não há algo especificamente direcionado para a sépsis.
Portanto, há uma necessidade crítica de investimento. A outra desvantagem é perceção que não conseguimos fazer nada para a sépsis, que é encarada como um cemitério de todas as tentativas da indústria farmacêutica. E isto afasta toda a gente. Afasta a investigação, a indústria farmacêutica, os apoios e toda a gente acha que, por mais interessante que os projetos possam ser, vão sempre falhar.
E, portanto, a tendência é dizer vamos investir noutras coisas e isso é um alerta que eu quero deixar porque, de facto, é uma patologia em crescimento, que afeta cada vez mais pessoas, com uma taxa de mortalidade de mais de 20%. A sépsis não é uma entidade única porque tem muitas causas. É um pouco como o cancro. Não há um tipo de cancro. Há múltiplas formas de cancro.
Todos eles têm as suas especificidades e as suas diferenças, que condicionam a forma como são tratados e a sépsis é um pouco a mesma coisa. Pode-se originar por uma infeção bacteriana simples, uma infeção viral – no contexto de COVID-19 ou de uma gripe forte ou infeção urinária. Todas as infeções podem, potencialmente, evoluir para sépsis. E isso significa que é uma entidade suficientemente diversa, que temos de compreender de uma forma específica, quase em cada caso, para podermos ter terapêuticas direcionadas. Portanto, isso torna as coisas muito mais complexas.
Sobre os sinais de alerta, não há sinais muito específicos. Mas há obviamente coisas que podem levar as pessoas a estar atentas como febre alta não explicada, mal-estar geral ou não urinar durante um dia. A sépsis é difícil de diagnosticar de uma forma muito precoce e, por vezes, as coisas já evoluíram o suficiente para tornar tudo muito complicado. Uma vez mais, todas as infeções podem evoluir – de formas que dependem de cada tipo de infeção – e tornar-se uma infeção global do organismo e, de facto, causar sépsis levando um desfecho menos positivo.
Este alerta não é tanto para o público em geral – embora deva estar desperto -, mas sobretudo para a comunidade médica, em que a possibilidade de sepsis deve estar sempre presente num quadro grave e no contexto de uma possível infeção.